Para Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a solução para o problema da habitação não passa, apenas, pelo público ou pelo privado. Em conversa, o autarca explica que a estratégia do seu executivo passa por reabilitar, construir e “ajudar as pessoas a pagar a renda” e assegura que “nunca tinha havido um investimento desta ordem” nos bairros municipais. Carlos Moedas faz ainda rasgados elogios ao trabalho da Gebalis: “Esta administração, com o Fernando Angleu, tem feito com que a Gebalis seja mais do um gestor das habitações, mas também uma organização que traz dignidade.”
Temos o direito a escolher em que cidade queremos viver?
O desafio da habitação exige mais oferta e também acesso e inclusão das pessoas. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), arrendar uma casa de 80 m² em Lisboa custa em média 1.200 euros por mês. Entre 2010 e 2020, o preço das rendas aumentou 64%, mas o rendimento das famílias só aumentou 22%. Este problema resolve-se se olharmos para todas as variáveis: não pode ser só através do público, do privado ou das organizações não governamentais.
A primeira estratégia para a habitação foi construir mais, mas também reabilitar mais. Tínhamos identificado pelo menos dois mil apartamentos que estavam fechados. Era muito mais fácil e rápido reabilitar. Fizemos um projeto de 150 milhões de euros com a Gebalis para recuperar esse património. Atualmente, já temos 1.800 destes apartamentos totalmente recuperados. Primeiro, houve um esforço em relação ao que podíamos fazer no imediato, que era começar a reabilitar o que já está construído; depois, fazer de novo e, ao mesmo tempo, ajudar as pessoas a pagar a renda. Por exemplo, para uma família com mil euros de rendimento, que paga mais do que 300 euros de renda, o que nós fazemos é: limitamos a um terço dos mil euros, que seria à volta de 300 euros, e se a renda for mais, a câmara paga a diferença. Com isso, estamos a ajudar mais de 1.100 famílias de forma rápida e concreta.
Essas medidas são suficientes para reverter esta tendência?
Nestes três anos, licenciámos mais de 10 mil habitações e penso que conseguimos dar a volta ao serviço municipal de urbanismo, que estava com muito licenciamento atrasado. Qual é, para mim, o maior problema na cidade? Nós conseguíamos ajudar famílias que tinham um rendimento abaixo dos 500 euros e famílias que estavam acima dos 870 euros por mês, mas depois havia um grupo de famílias, entre os 500 e os 870 euros, que não conseguíamos ajudar, o que criava uma injustiça terrível. Alguém que tivesse um rendimento muito baixo não tinha incentivo para encontrar um emprego, porque, se o rendimento aumentasse, já não era ajudado. E estamos, pela primeira vez, a conseguir ajudar os vários grupos e a aumentar a oferta de habitação pública.
Com três anos de mandato, qual é o balanço que faz do trabalho realizado na habitação? Que mudanças significativas é que os lisboetas podem notar?
Entregámos 2.432 habitações e ajudámos mais mil. Estamos a falar de 3.400 famílias que, de outra maneira, não tinham casa. Algumas zonas da cidade estavam completamente paradas: no Vale de Santo António, que são 48 hectares no meio da cidade, por cima de Santa Apolónia, vão existir mais 2.400 habitações. Trata-se de um projeto que estava parado há mais de 20 anos e agora vai mesmo avançar.
A Gebalis gere a habitação pública na cidade de Lisboa. Qual é que tem sido o contributo desta empresa municipal para a criação de habitação a preços acessíveis?
A Gebalis tem feito um trabalho muito maior do que isso: acompanha as famílias. O primeiro fator de dignidade na vida é ter casa. Mas depois há uma segunda parte que é encontrarmos um caminho – e a Gebalis tem tido um papel incrível. Penso que esta administração, com o Fernando Angleu, tem feito com que a Gebalis seja mais do um gestor das habitações, mas também uma organização que traz dignidade.
As parcerias com o setor privado são apontadas como uma possível solução para aumentar a oferta de habitação acessível. A Câmara de Lisboa recebeu propostas nesse sentido, mas nem todas avançaram. Que impacto poderiam ter tido essas iniciativas?
Teriam seguramente um impacto muito positivo. Houve, de certa forma, um bloqueio ideológico que não deveria ter existido. E porquê? Porque nós precisamos dos privados. A ideia destas concessões era que nós dávamos o terreno por 90 anos aos privados, eles construíam uma parte acessível e uma parte para eles poderem ter no mercado livre. Mas tinham de ter algum rendimento. O modelo que vinha do executivo anterior era um modelo em que os privados não quiseram participar porque não estão dispostos a perder dinheiro. E isso é algo que nós, na política, temos de perceber. Estamos a tentar que a oposição aprove esta ideia num modelo que faça sentido.
Já lançámos uma cooperativa, vamos lançar mais cinco. A cooperativa é dar o terreno a um grupo de pessoas ou a uma associação para construírem. Esta é uma ideia típica do Partido Comunista Português. Eu não tenho nenhum complexo em dizer isso. Não podemos ter uma ideologia no meio.
Tem alguma alternativa para compensar?
Para resolver o problema da habitação, precisamos de muitas variáveis. Não há uma bala de prata que, de repente, resolve tudo. Já lançámos uma cooperativa, vamos lançar mais cinco. A cooperativa é dar o terreno a um grupo de pessoas ou a uma associação para construírem. Esta é uma ideia típica do Partido Comunista Português. Eu não tenho nenhum complexo em dizer isso. Não podemos ter uma ideologia no meio.
O seu executivo tem sido criticado por não construir habitação suficiente, apesar dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Está ou não a ser construída nova habitação na cidade?
Quando falo dos 2.400 apartamentos que entregámos nestes três anos, 1.800 são reabilitados, os outros 600 são construção nova. E vamos ter muito mais. Só que, para haver construção do zero, tem de haver um projeto, um concurso, uma adjudicação. Tudo isto demora muito tempo. Assinámos com a União Europeia talvez o maior contrato de habitação dos últimos 30 anos: 560 milhões de euros. Estamos a falar de Marvila, do Beato, Vale de Santo António, Quinta do Ferro, Casal do Pinto, Bairro Padre Cruz, Bairro da Boavista… Temos bairros em Lisboa que estão a ser completamente mudados e, se as pessoas fossem lá, ficavam espantadas pela qualidade.
O Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), o responsável pela gestão dos fundos do PRR, tem sido apontado com um entrave devido à demora nos pagamentos. Essa situação já está resolvida?
Não está totalmente resolvida, mas está muito melhor. Vamos imaginar que sou um dono de casa: tenho de pagar com o meu dinheiro e depois esperar que a Comissão Europeia me pague através do IHRU. Isto cria problemas de tesouraria grandes. Tem sido muito difícil de gerir porque esse dinheiro não tem chegado a horas do IHRU. Está a melhorar, mas ainda está longe de estar resolvido.
O programa “Morar Melhor” promete reabilitar bairros municipais com o objetivo de melhorar a qualidade de vida das famílias que aí vivem. Quanto é que está a ser investido e qual será o real impacto nas condições de vida dessas pessoas?
Neste executivo, já ultrapassámos os 140 milhões para recuperação e reabilitação dos imóveis. Devemos ter 40 edifícios em obra neste momento. Acho que nunca tinha havido um investimento desta ordem em termos de morar melhor nos bairros.
Tem destacado a importância de não termos uma cidade esquecida, referindo-se a zonas da cidade que têm sido negligenciadas ao longo do tempo. O que é que tem sido feito para garantir que todas as áreas da cidade, incluindo as mais marginalizadas, recebam a devida atenção e investimento?
Quando se fala em partes esquecidas, estamos a falar também de mobilidade. Criámos carreiras de bairro – em que o autocarro da Carris faz uma volta dentro do bairro – em zonas onde os transportes não chegavam. Estamos também a falar de espaço público. O que a Gebalis faz é muito mais do que só a casa por dentro: são os jardins, o verde, as obras… Tudo isso está a ser feito para valorizar o espaço público.
A habitação pública sempre foi vista como um apoio essencial para as famílias mais vulneráveis. Mas hoje, até a classe média sente dificuldade em pagar a casa. O que está a ser feito para apoiar grupos específicos?
Na PSP e na Polícia Municipal, já conseguimos pôr 40 membros que não tinham casa em Lisboa. Estamos a arrancar com um novo projeto para encontrar um edifício para polícias que não conseguem pagar a renda em Lisboa. Depois, nos nossos programas de renda acessível, temos um conjunto de jovens profissionais – arquitetos, professores, enfermeiros, médicos – para os quais estamos a criar oportunidades de habitação acessível. Em Entrecampos, acabámos agora mais um edifício e queremos acelerar esses programas com os tais 560 milhões de euros.
150 Milhões
É o valor do programa Morar Melhor, iniciativa da autarquia de Lisboa com a Gebalis para reabilitar 476 edifícios de habitação municipal e cerca de 2000 apartamentos que estavam fechados. Dessas duas mil casas, 1800 já foram recuperadas.Muitos apontam o turismo e o investimento estrangeiro como os grandes culpados pela escalada de preços da habitação. Qual é o real impacto destes fatores no mercado habitacional? E como se equilibra o desenvolvimento económico da cidade com o direito à habitação dos seus residentes?
O turismo em Lisboa representa 20% da nossa economia e 25% do emprego. Portanto, nunca podemos esquecer a parte positiva do turismo. Agora, é preciso regular este equilíbrio e fizemo-lo de várias maneiras. Uma foi a duplicação da taxa turística em Lisboa, que aumentou de dois para quatro euros e, com esse montante, vamos poder ter mais limpeza, melhor espaço público… Depois, é preciso criar oportunidades de emprego para o talento que cá está e para o que vem de fora. Isso é o que temos feito com a fábrica de unicórnios, onde já temos mais de 14 unicórnios, que criaram mais de 15 mil postos de trabalho. E depois o alojamento local, que é um tema muito falado, até porque de 2010 a 2020, não foi controlado. No alojamento local, em 2010, havia 500 unidades, em 2019, havia quase 20 mil. Nós aprovámos um regulamento para limitar o alojamento local na cidade à volta dos 5%. O que é que isto quer dizer? Por cada cinco apartamentos de alojamento local tem de haver 100 apartamentos de não alojamento local. Este é o rácio máximo. Mas o que é que aconteceu? Em freguesias como Santa Maria Maior, 65% é alojamento local. O tal descontrolo durante estes anos todos fez com que, nesta freguesia, haja 65 casas de alojamento local e as restantes 35 sejam alojamento normal. Isso não deveria ter acontecido.
Muitas cidades europeias tomaram medidas mais drásticas para travar o alojamento local. Por exemplo, Berlim proibiu o arrendamento de apartamentos inteiros a turistas em plataformas como o Airbnb. Barcelona vai eliminar todos os apartamentos turísticos até 2029. Lisboa deve seguir esse caminho?
Não gosto nada de medidas radicais. Acho que devemos encontrar um equilíbrio. Por exemplo, há freguesias em Lisboa que quase não têm alojamento local e poderiam ter. Devíamos limitar o número de tuk-tuks, mas não acabar. Ou o caso dos TVDE. Deve haver limitações, regulação, mas não deve haver proibição. Paris, de repente, proibiu as trotinetes. Porquê? Porque não tinha feito nada para as regular.
Lisboa corre o risco de se tornar uma cidade só para ricos e turistas? O que é que está a ser feito para garantir que daqui a 10 ou 20 anos esta ainda é uma cidade para todos?
Se olhar para as contas da câmara, vai ver que onde mais investi foi na habitação. A Gebalis também teve um papel muito interessante nas clínicas de proximidade. Muitos lisboetas não têm médico de família e a Gebalis criou uma pequena clínica com um médico, um enfermeiro e um nutricionista. Temos uma no Bairro do Armador [em Chelas] e outra na Alta de Lisboa e já demos mais de 700 consultas. As pessoas não precisam de marcar e podem ir lá três dias por semana. 80% do meu tempo é gasto na parte social da câmara, seja na saúde, na habitação ou nas pessoas em situação de sem-abrigo.