Há cada vez menos diferenças entre o estilo de vida das pessoas que residem em bairros municipais e os restantes lisboetas. Prova disso é a integração das gerações mais jovens e o próprio tecido urbano que se mistura, esbatendo as diferenças que antes eram apontadas com relativa facilidade. Estas são algumas das conclusões do estudo “Filhos do Bairro”, realizado pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) em parceria com a Gebalis. Segundo Rute Xavier, professora da UCP, este estudo, realizado a cerca de mil residentes, em 2023, procurou analisar a “diferença em termos de vivência das pessoas nos bairros”, em particular “como é que tinha sido a sua vida e a vida dos seus filhos”. E uma das grandes diferenças detetadas foi o nível de escolaridade: “As pessoas que integraram estas casas há 20, 30 anos eram pessoas que tinham média/baixa escolaridade; 5% tinham o ensino superior e mais de 50% tinham o ensino secundário. O que vemos é que, nos seus filhos, maiores de idade, há uma progressão imensa, pois 17% têm o ensino superior e mais de 50% têm o ensino secundário já completo”, explica.
Outro dos fatores analisados para avaliar o “elevador social”, ou seja, se houve uma melhoria socioeconómica destes moradores, foi ver o que estes filhos estão a fazer, se estão a morar e a trabalhar no bairro, exemplifica Rute Xavier. E a conclusão a que chegaram foi que a segunda geração do bairro estava a ter uma vida perfeitamente integrada: “Não estavam necessariamente a trabalhar no bairro, estavam a trabalhar em toda a cidade. Cerca de 20% estavam a arrendar casa fora do bairro e havia uma percentagem muito pequena que ainda permanecia dentro do bairro.”
A segunda geração do bairro não estava necessariamente a trabalhar no bairro, estava a trabalhar em toda a cidade. Cerca de 20% estavam a arrendar casa fora do bairro.
O trabalho foi outro “indicador muito positivo” para esta segunda geração: “Cerca de 70% estavam a trabalhar por conta de outrem ou por conta própria, portanto, perfeitamente integrados na sociedade”, afirma. Todos estes indicadores avaliados no estudo “Filhos do Bairro” permitiram concluir que “foi dado um apoio em termos de habitação municipal aos pais, que fez com que o nível de vida, em termos de educação e de trabalho, da segunda geração viesse a melhorar”.
Gabinetes espalhados por Lisboa
A Gebalis, empresa municipal sob tutela da Câmara Municipal de Lisboa (CML), faz a gestão de 23 mil habitações e cerca de 64 mil residentes, o que, segundo Mikaella Andrade, diretora de intervenção local da Gebalis, representa “praticamente 15% da cidade de Lisboa”. A empresa municipal, além de ter a gestão social, financeira e patrimonial dos edifícios, tem também a missão estratégica de promover o desenvolvimento dos territórios. Para isso, tem dez gabinetes espalhados pela cidade de Lisboa, onde aposta numa “gestão de proximidade”. “Afamília, assim que recebe uma casa, é visitada pelos técnicos para a integrar dentro das relações de vizinhança, para a integrar no lote, na comunidade, para perceber o que pode esperar dos serviços e para se fazer um diagnóstico de eventuais necessidades”,afirma a diretora. Além do grande investimento do município em obras de requalificação, a Gebalis também desenvolve programas em parceria com os residentes, como o Lotes ComVida, em que se procura “perceber com os residentes o que gostariam de melhorar”. Ou o grupo comunitário Quarto Crescente, em Marvila, que faz, segundo Mikaella Andrade, “um trabalho interessantíssimo sobre o espaço público, sobre a intervenção nos jardins, nas ciclovias…”. Foi isso mesmo que Rute Xavier, professora da UCP, constatou através do estudo “Filhos do Bairro”: “Havia uma proximidade muito grande a nível de infraestruturas, não só de educação, como as escolas, como atividades extraescolares, que fazia com que os jovens crescessem de uma forma saudável.”
Foi dado um apoio em termos de habitação municipal aos pais, que fez com que o nível de vida, em termos de educação e de trabalho, da segunda geração viesse a melhorar.
Apesar de a educação não ser diretamente uma competência da Gebalis, a diretora de intervenção local, Mikaella Andrade, reconhece que é “um pilar fundamental” de intervenção. E dá como exemplo alguns programas que estão em curso. “O Community Champions League, desenvolvido em parceria com a Fundação Benfica, é um projeto que, por meio do desporto, trabalha competências pessoais e sociais destes jovens, residentes em territórios vulneráveis e que, por si só, já têm limitações no acesso ao desporto”, conta e prossegue: “É uma forma de demonstrar que são tão importantes os golos que marcam em campo como as intervenções comunitárias que fazem fora do campo.” Outro exemplo é a Semana Digital: “Aproveitando o período de férias escolares, é uma semana em que os jovens entre os 7 e os 17 anos têm a possibilidade de trabalhar competências de programação, de robótica e vamos apostar agora também na inteligência artificial. A Semana Digital acabou por ser um pilar da nossa intervenção porque tivemos bons resultados.”
mil habitações gere a Gebalis, empresa municipal sob tutela da Câmara Municipal de Lisboa. Estas habitações têm cerca de 64 mil residentes.
Nesta aproximação às comunidades, a diretora de intervenção local da Gebalis refere ainda o concurso Talentos do Bairro como um exemplo de integração: “Foi um projeto que desenvolvemos, pela primeira vez, no ano passado, e que permitiu dar oportunidade a jovens com talento na área musical. Tivemos um exemplo muito curioso: dois jovens residentes em habitação municipal juntaram-se a um outro jovem [que reside em habitações de venda livre] – os três estudavam no conservatório – e decidiram concorrer. Nós não fechamos os nossos programas aos residentes dos bairros municipais porque achamos que isto é o que faz, de facto, alavancar o desenvolvimento dos territórios.”
Bairros municipais: realidade vs. perceção
Se há alguns anos, a maioria dos lisboetas apontava a Zona J como uma das áreas com maior estigma da cidade, atualmente está a tornar-se numa zona cosmopolita. Reflexo disso são os preços das casas. “Era uma zona muito vincada por habitação pública e, hoje, os preços das casas em Marvila são dos mais altos de Lisboa. A malha urbana transformou-se de tal forma que se estendeu para a periferia, onde havia estes bairros”, explica Mikaella Andrade. Outro exemplo de integração é a Alta de Lisboa, em Telheiras “Há uma mistura de habitação pública e mercado livre que não se consegue às vezes perceber se é da Gebalis ou se é de habitação livre. Cada vez mais se está a esbater esta diferença”, garante.
A família, assim que recebe uma casa, é visitada pelos técnicos para a integrar dentro das relações de vizinhança, para a integrar no lote, na comunidade, para perceber o que pode esperar dos serviços e para se fazer um diagnóstico de eventuais necessidades.
80% dos lisboetas questionados através do estudo “Filhos do Bairro” sabiam o que era e conheciam os bairros municipais. No entanto, quando lhes perguntaram se moram próximo de um, “perto de 50% disseram que não”. Mas – assegura Rute Xavier, da UCP – “afinal moravam”. Inicialmente, surgiu a hipótese de estas pessoas não quererem admitir que moram perto de um bairro municipal. No entanto, quando lhes foi pedido que identificassem um bairro municipal que conhecessem, a maioria não conseguiu: “Muitas vezes, os bairros municipais que identificavam eram das duas uma: ou bairros que, historicamente, foram municipais, mas já não são e, portanto, estão no mercado de arrendamento; ou bairros que, tipicamente, são mais noticiados e, portanto, havia um conhecimento não em causa própria, mas por ouvirem nas notícias.” Apesar disso, a grande maioria – “cerca de 70% – disse que deve haver mais bairros municipais em Lisboa. E aqueles que responderam que não deve haver defendem “outras soluções de apoio à habitação, nomeadamente aproveitamento de imobiliário e de espaços que já existem, ou até a integração de apartamentos municipais em prédios de um bairro ‘comum’”, justifica Rute Xavier.
Perante estes dados, as duas responsáveis defendem que há um trabalho ao nível da comunicação que precisa de ser feito para desconstruir perceções erradas sobre os bairros. Por exemplo, refere a professora universitária, “as pessoas têm a perceção de que quem mora nos bairros são principalmente famílias multinucleares”. “Não é verdade”, assegura e prossegue: “Nós identificamos que as famílias que moram nos bairros municipais têm, em média, uma dimensão de 2,7 pessoas. Portanto, são famílias pequenas, algumas até monoparentais. Outra coisa é pensar que, em termos de rendimento, são dependentes de apoios sociais. Também não é verdade. 90% das famílias estão dependentes de um ou de dois rendimentos.”
O Talentos do Bairro foi um projeto que desenvolvemos, pela primeira vez, no ano passado, e que permitiu dar oportunidade a jovens com talento na área musical.
Não obstante esta perceção errada, o estigma não se reflete na prática na vida destes moradores. “As pessoas não têm necessariamente no seu cartão de identificação que moram num bairro municipal. Portanto, quando acedem a uma escola, a uma universidade, a um emprego, são pessoas que têm habitação, têm condições de vida e, tendencialmente, têm as mesmas oportunidades que as outras pessoas”, afiança Rute Xavier.